Agosto de 1979. Nelson Salmon, diretor do instituto penitenciário Cândido Mendes, é alertado por um interno que haveria uma tentativa de fuga naquela noite. Salmon, então, coloca seus homens na mata, impede a fuga de sete apenados e começa a investigar de onde viria a ajuda externa para que aqueles detentos chegassem ao continente. O que parecia uma batalha vencida pelos policiais se tornou motivo de desespero: o barco responsável por levar os presos percebe que algo no plano deu errado e inicia o fuzilamento. Nesse momento, Salmon percebe que não lidava com um simples esquema de fuga e notifica as autoridades. Contudo, com o processo de abertura política em vigor, não era interessante que estes “atos terroristas” fossem investigados. O relatório foi ignorado.
Menos de dois anos depois. 3 de abril de 1981. José Jorge Saldanha foge do Caldeirão do Diabo e luta até a morte numa intensa troca de tiro. Antes do seu último suspiro, revela: eu sou o Zé Bigode do Comando Vermelho. É aí que a existência do CV se mostra para além dos muros de Ilha Grande.
Sua formação se deu no período da Ditadura Militar. Com a Lei de Segurança Nacional – criada principalmente para reprimir grupos políticos de oposição à Ditadura –, enquadraram-se num mesmo nível todos os suspeitos de falsificação de documento, assalto a bancos, etc – práticas comuns entre a guerrilha de esquerda para que houvesse arrecadação financeira.
Desse modo, o ambiente prisional de Ilha Grande transformou-se em um calabouço de guerrilheiros, assassinos, estupradores, criminosos comuns e políticos. Se, por um lado, desse convívio houve aprendizagem de estratégias, hierarquias e ideologias de afronta ao Estado, por outro, os benefícios que por vezes surgiam aos presos políticos geravam revolta.
Todavia, os estranhamentos foram aos poucos sendo deixados de lado perante ao cenário calamitoso em que estavam inseridos. O presídio que, desde 1886, na época do imperador Pedro II, era conhecido pelas suas condições desumanas, ambientava condições precárias: com o local abrigando mais que o dobro de sua capacidade, os presos – como diziam os carcereiros aos recém-chegados – eram enviados para morrer. Foi a partir dessa convivência opressiva que, em junho de 1979, parte dos presos se unem sob o lema “Paz, Justiça e Liberdade” – uma estratégia que, como dito por William da Silva Lima, um dos fundadores do CV, foi necessária para sobreviver àquela adversidade extrema. Assim, a chamada Falange da LSN impôs um código de conduta, o qual acabaria com a violência entre os presos – o inimigo passaria a ser o Estado, não os companheiros de cela.
Entretanto, esses laços de solidariedade só valiam entre os presos do “fundão”, fato que ocasionou uma violenta rebelião – a qual gerou o maior número de mortes de presos já registrados, sendo superada apenas pela Chacina do Carandiru –, ocorrida em 17 de setembro de 1979, que fortaleceu a Falange Vermelha – batizada com esse nome pelos policiais após o massacre – e permitiu que iniciasse o que hoje conhecemos como Comando Vermelho.
Esse último nome, segundo William, foi criado pela mídia. Tentou-se vincular a cor vermelha à esquerda, destacando-se a origem da facção como a união entre os presos políticos e comuns. Além disso, a palavra “comando” remete à ideia de controle central, inserida no nome da facção com o intuito de responsabilizar e vincular os atos criminosos aos inimigos do regime. Isso permitiria uma maior consolidação da Ditadura, visto que reafirmaria a existência do agente do mal – o conhecido “medo vermelho”.
Numa outra perspectiva, José Carlos Gregória, ex-membro da facção, afirmou que o CV cresceu nos espaços deixados pelo Estado. Hoje, a facção é conhecida pelo envolvimento com o narcotráfico e roubo de cargas, sendo uma das maiores do Brasil.
Referências:
SOARES, Wagner. Comando Vermelho – CV. Jusbrasil, 2019. Disponível em: https://wagnersyang.jusbrasil.com.br/artigos/848423449/comando-vermelho-cv. Acesso em: 09 dez. 2022.
Ficha Criminal: Violência em presídio no RJ fez nascer o Comando Vermelho. UOL, 2019. Disponível em: https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2019/12/18/ficha-criminal-violencia-em-presidio-no-rj-fez-nascer-o-comando-vermelho.amp.htm. Acesso em 9 dez. 2022.
MARTÍN, Maria. O Comando Vermelho, do presídio em uma ilha paradisíaca à guerra sangrenta por território. El País, Rio de Janeiro, 2017. Disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2017/01/13/politica/1484319135_043725.html?outputType=amp. Acesso em: 9 de dez. 2022.
FARIA, Cáatia. DURA LEX, SED LEX. A LUTA PELO RECONHECIMENTO DOS PRESOS POLÍTICOS NO BRASIL (1969-1979). Histórica – Revista Eletrônica do Arquivo Público do Estado de São Paulo, n.33, 2008. Disponível em: http://www.historica.arquivoestado.sp.gov.br/materias/anteriores/edicao33/materia05. Acesso em: 9 dez. 2022.
GRAHL, Priscila Pugsley. A história do Comando Vermelho. Palavra dos especialistas, 2010. Disponível em: http://especialistas.aprendebrasil.com.br/a-historia-do-comando-vermelho/. Acesso em: 9 dez. 2022.
Organização nasceu do convívio com grupos de combate ao regime militar. Folha Online, 2002. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/folha/especial/2002/traficonorio/faccoes-cv.shtml. Acesso em: 9 dez. 2022.
Ilha Grande, hoje um local de turismo, já foi um famoso centro carcerário. Chegou a receber notórios presos políticos. Durante a Ditadura Vargas, lá sobreviveu Graciliano Ramos, que escreveu parte de sua experiência em Memórias do Cárcere. Também o político Fernando Gabeira, em O que é isso, companheiro?, narrou sua luta contra o regime militar e seu período nessa prisão.